sexta-feira, 31 de julho de 2009

Tenho dito!

"Trabalhadores do Brasil!
Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil...
'Povo de minha terra!
Para frente e para o alto... pé em deus e fé na tabua... e graças à leonor, aquela santa, temos hoje o hospital das clínicas, havia anchieta, os sanatorinhos...
e que ...
'Meus amigos da vila maria, vejam como 'varre, varre vassourinha...
'Senhoras de Curralinho, senhores de Páu Grande...
'manés de minha terra, malandros-agulha, cariocas ishpérrrtosssh, globetes saradas e todos os amigos e a comunidade do rabi sobel...
Aviadores do Brasil...
"Aviso aos navegantes...
(... a minha, a sua, a nossa favorita, Emilinha Bóoooorba...)
... não se deixem levar pela emoção, pela ternura, pelo grande coração, homem brasileiro, deixe de lado a "cordialidade" , não sejam "taciturnos", lembrem que "o sertanejo é, acima de tudo, um forte", e que os que hoje assinam e encaminham representações ao conselho de ética e tentam"impichar" o cúmplice de ontem são farinha do mesmo saco (ejudem harinae), que o públio marão 'das amazonas' e o "gaudério" levantino de falar enrolado e enrolador (171), metido a pai da pátria e (mãe) da moralidade e da ética ( ... deve ser um centauro como dizia o joão figueiredo: metade cavalo e a outra metade... também)... e o heráclito (o de falar flatulento... puf, puf, pum...), e o demóstenes... ai, ai, ai... o cristó-vão santarrão e 'da educação'... o eduardo piradão da renda mínima... tudo mentiroso, tudo pilantrão...
... e mais perigosos que o "sir"ney, no momento, pois estão apenas tratando de tirar o C da reta... ou da seringa, se quiserem. São as ratazanas abandonando o barco para ver se entregando os anéis conservam os dedos...
...e pra mostrar que agem e não falam, apenas, correm todos para chutar o cachorro (que crêem) morto...
... não é que eu seja correligionário do guia genial dos maranhenses e 'inventor' do zangão flamejante (flamboyant, para 'le fines gens' de Saint Louis du Maragnón), é que sempre pode ser que o totó esteja "se fazendo de morto" e ainda morda como um mastim napolitano...
É verdade, josé ribamar já foi um 'incitatus' castrense, mas o 'poeta' manauara, o ventríloco pampeiro, o 'demóstenes" do Brasil Central et caterva são todos "incitatus" do sistema e das oligarquias, e o que deve ser "impichado" é o 'senado', o senado deve ser extinto, os 'senadores' devem ser investigados, processados e condenados às penas cabíveis (se não as houver, que se as crie, diria Danton..) e ao ressarcimento do erário escabrosamente dilapidado.... (ter que devolver... ái como dói!)
Basta de bi-cameralismo! Fora com o senado, esse 'cavalo de tróia' da monarquia na República...
Tenho dito!
por Albano Fonseca
Publicado em 30 de julho, 2009

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Estudos sobre Cultura

A indústria fonográfica nascente e o processo de exclusão dos negros: um estudo comparativo entre Brasil e Estados Unidos.

Por Michel Nicolau Netto

A indústria fonográfica nasce no começo do século XX dentro de um processo de modernização. Por isso, introduzimos este artigo tratando deste processo que, se em seu caráter abstrato é universal, ou seja, se espalha pelo mundo, em seu caráter concreto é particular, ou seja, se manifesta de diferentes maneiras em relação às conjunturas históricas, sociais e econômicas específicas. Esta realidade impôs a quebra da celebração, feita por diversos autores do fim do século XIX, como Gobineau e Buckhart, deste processo. O mundo não se tornou Europa e nem mesmo no ocidente a melhoria das condições de vida se deu a todos. O progresso, categoria então válida para se crer no desenvolvimento da modernização e em suas conseqüentes benesses, significou muito mais um discurso de prática inócua, quando não a justificativa para formas de exploração entre nações, como vimos no neo-colonialismo e no imperialismo, entre classes e entre etnias.

Esta realidade mudou o rumo do tratamento do tema nas ciências sociais e diversos autores especialmente a partir da segunda metade do século XX (mas Weber, por exemplo, já problematizara esta questão antes) se voltaram à crítica da modernização. Tendo em vista a morte de diversos discursos universais (como apontou Lyotard (1986)) e, especialmente, da categoria progresso (como apontou Nisbet (1980), este, é bem verdade, em tom de lamento), foi-se possível pluralizar a visão sobre a modernização. Um autor como N.S. Eisenstadt chega a falar então de múltiplas modernidades[i], outro como Wallerstein, ao tratar de seu Sistema Mundo percebe como a modernização se manifesta de modo perverso em diversos lugares. Do mesmo modo, os estudos específicos também se tornam possíveis, e Theda Skocpol pôde estudar o processo nos Estados Unidos atentando à questão de gênero (in: Spohn, 2005), enquanto Florestan Fernandes tratou do Brasil colocando o peso da análise na questão de classe e de etnia (nos diversos textos citados na indicação bibliográfica).

Essas perspectivas nos abrem a possibilidade de estudarmos um dos fenômenos da modernização – a indústria fonográfica nascente – no Brasil, tendo como foco a relação desta indústria com os negros produtores culturais. Para tanto, escolhemos fazer uma análise comparativa com o mesmo processo nos Estados Unidos. Isso não significa que a nossa análise tratará dos dois países com igual atenção. Nosso estudo é interessado: queremos pensar o Brasil e, portanto, só entraremos na caracterização norte-americana quando esta for proveitosa para a formação dos nossos argumentos. Outra opção metodológica relevante que fizemos foi fazer nosso estudo sobre as bases estruturais. Não estamos tão preocupados aqui em mostrar a dinâmica e os processos de negociação entre os autores envolvidos. Estamos cientes de que os processos de mudanças, como já colocava Eisenstadt (in: KOENIG, 2005: 47), levam a um rearranjo de forças, com a possibilidade de ascensão social para uns e a decadência para outros. Isso não é diferente na história da indústria fonográfica em sua relação com os negros. Contudo, achamos importante também entender em que estruturas este rearranjo é dado e, por isso, focamos nosso artigo neste aspecto. Se ele não resolve a questão – nem pode ser essa sua pretensão – almejamos ao menos que ele lance luz sobre novos debates. Isso nos leva também a propositalmente desconsiderar as transformações simbólicas ocasionadas pela indústria fonográfica (a música, é evidente, passa por transformações simbólicas relevantes, especialmente a dos negros). Nossa preocupação central é mostrar a estrutura na qual o indivíduo com sua produção cultural é lançado e suas condições, nesta estrutura, de ascensão ou sua exclusão. Quanto a isso é que os casos brasileiro e norte-americano se diferenciam, como veremos.

Notemos de início um dado empírico sem o qual não podemos seguir em nossa argumentação. Como este dado já foi por nós tratado de maneira mais extensa em outra oportunidade (Nicolau Netto, 2007: 68, 69) aqui fazemos um resumo suficiente para mostrarmos o acesso (ou sua falta) dos negros às indústrias fonográficas brasileira e norte-americana. A gravadora Victor lançou no Brasil entre 1932 e 1933 154 sambas anotados em seu catálogo ou como popular ou como carnavalesco. Apenas 12 artistas gravaram cinco ou mais dessas músicas, sendo estes os que nos interessam, pois são os que possuem efetiva participação no processo industrial de gravação. Destes artistas, apenas “o caboclinho” Sylvio Caldas e a Guarda Velha não são intérpretes brancos, sendo que, contudo, a Guarda Velha era um grupo instrumental que nas gravações apontadas aparece invariavelmente acompanhando algum artista branco. O mesmo processo se repete se pegarmos como base de pesquisa o caderno de novidades da gravadora Odeon do Brasil em 1930. Foram apresentados 14 sambas, duas marchas carnavalescas e um maxixe, sendo sete seus intérpretes. Destes, apenas Patrício Teixeira, aliás o único a fazer apenas uma gravação – Francisco Alves, por exemplo, gravou seis destas canções – era negro. Portanto, se o primeiro samba é gravado no Brasil em 1917 (Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida) apenas treze anos depois os negros não estão na indústria fonográfica.

No mesmo período, a situação nos Estados Unidos é diferente. Em 1926, “300 discos de blues e gospels foram lançados nos Estados Unidos, a maioria deles com mulheres vocalistas negras” (Gioia, 1997: 17). E para darmos exemplo, a negra “imperatriz do blues”, Bessie Smith, vendeu 750 mil cópias de seu primeiro disco “Down-Hearted Blues”, pelo selo da Columbia, em 1923[ii].

Isso, nos parece, basta para dizemos que o negro não teve nos dois países o mesmo acesso à indústria fonográfica. Esta diferença, que é estrutural, precisa ser explicada e aqui o fazemos ao analisamos dois aspectos: tipos de indústria fonográfica e motivos de aproximação das classes médias e altas à cultura popular. Em ambos os casos, mantemos em mente os processos diferentes de modernização.

Aspectos sobre os tipos de indústrias fonográficas no Brasil e nos Estados Unidos.

É característica da modernização brasileira, que a passagem do modo de produção colonial, agrário, pré-capitalista, para o modo de produção capitalista não tenha se dado através de uma mudança na estrutura social brasileira, mas tão somente por uma mudança política que extinguiu as amarras das oligarquias à metrópole, liberando, com isso, todos seus esforços para que se voltassem a seus lucros monopolizados. Por isso, a nossa modernização pode ser caracterizada como conservadora. Como mostrou Florestan Fernandes, “(...) atrás de uma aparente ebulição capitalista, deparamos com estruturas coloniais que se ‘fixam’ no mundo emergente, através de amálgamas e composições que irão revelar a duração secular ou semi-secular, o que se converte no ‘outro lado necessário’ do capitalismo da periferia da Europa na revolução burguesa e do nascente capitalismo” (2004a: 362). Dessa maneira, a economia exportadora brasileira é levada para dentro do capitalismo, em um novo sistema internacional, no qual a nossa elite tinha um papel dependente em relação aos países centrais, lançando, com isso, o capital excedente para o exterior e não formando em nenhum momento das primeiras três décadas do século XX um mercado consumidor nacional.

Nos Estados Unidos, ao contrário, o capitalismo ao se firmar se volta para dentro, especialmente após a Guerra da Secessão na qual o Norte industrial derrota o Sul agrário e com isso impõe seu sistema capitalista industrial de produção. O capital excedente, então, pode se voltar para o desenvolvimento desta indústria.

A produção cultural sofre reflexos disso. Enquanto nos Estados Unidos já na segunda metade do século XIX ela é pensada como parte de uma indústria voltada a ser consumida pelo maior número possível de pessoas, no Brasil ela se mostra incipiente até pelo menos a década de 60, como bem já mostrou Renato Ortiz (2003). O próprio autor, baseando-se no comércio livreiro, mostrou a fragilidade de nossa indústria, na qual “a produção de livros no Brasil, no início do século XX, era semelhante à francesa da época da Revolução” (2001: 187).

Já nos Estados Unidos podemos ver, na mesma época, o montante de recursos aplicados em estruturas tecnológicas de produção e difusão cultural. No caso da indústria fonográfica:

Ainda em 1909, algo em torno de 12 milhões de discos fonográficos e cilindros (preço de atacado) eram fabricados nos Estados Unidos; apenas doze anos mais tarde, as vendas subiram quatro vezes deste patamar, alcançando 47,8 milhões de dólares. Este tremendo crescimento deu condições para um substancial aumento de gravações de jazz nos próximos vários anos. (Gioia, 1997: 70).

Já no campo do rádio, o crescimento de capital investido impressiona ainda mais. A primeira estação de rádio comercial, a KDKA, de Pittsburgh, surge em 1920. Em 1921 vendem-se, então, US$11 milhões em equipamentos para rádio. No fim dessa década, as vendas anuais já eram de US$850 milhões (Gioia, 1997: 136).

Quanto a este aspecto, no Brasil, até 1927 apenas quatro rádios atuavam, e todas voltadas para uma elite que contribuía com recursos para mantê-las no ar. Eram elas: Rádio Educadora (a primeira surgida, em 1924), Mayrink Veiga, Clube do Brasil e Rádio Sociedade (Cabral, 1996: 10). Apenas com a permissão à veiculação de propaganda, em virtude de decreto assinado por Getúlio Vargas em 1932, as rádios se proliferaram no Brasil (em 1934, já existem 65 emissoras no país (Castro, 2005: 118), em 1944 são 106, em 1950 já são trezentas (Ortiz, 2001: 191)) e a capacidade de transmissão aumentou. E se falamos em publicidade, esta dá um outro bom exemplo do investimento cultural norte-americana. Entre 1865 e 1904 os gastos nesta área sobem de US$8 milhões para US$800 milhões. Este último já representa 3,4% do total do PIB americano, a mesma porcentagem de 1985 (Staiger, 1999: 97).

Com o avanço do capitalismo sobre a produção cultural, esta se modifica definitivamente. E isso ocorre tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. A consagração de uma música não é mais dada por quem está próximo ou pelos pares, nem mesmo julgada por questões meramente estéticas. Ao contrário, a música se consagra pelos meios capitalistas de difusão em massa e, como tal, seu índice de sucesso se dá pelo público que atinge e pelo capital que gera. Essa relação de consagração, no começo alheia ao artista e restrita aos empresários culturais, tende também a permear a visão do criador. Contudo, neste momento os dois países aqui analisados se opõem. A sobreposição de uma ética tradicional sobre uma economia moderna cria um descompasso histórico mais perverso às classes baixas, pois permite às classes altas brasileiras um domínio mais complexo sobre a indústria e sobre a ideologia firmadas. Com isso, neste país o criador das classes baixas é mantido como mero fornecedor de matérias-primas (ainda que simbólicas) e alheio à ideologia burguesa. Assim, ele tem restringida a possibilidade de enxergar na música uma possibilidade de “fazer dinheiro”, de ter uma profissão de sucesso e de, finalmente, ascender socialmente. Essa possibilidade, contudo, é mais ampla nos Estados Unidos, embora tampouco igual entre as classes. Tratando de Duke Ellington, Eric Hobsbawn mostra que:

Música, o que ele [Ellington] parece ter visto originalmente meramente como algo secundário em busca de diversão, se tornou um óbvio e fácil modo de se ganhar a vida, dada a enorme demanda que a era do jazz e a posição dos negros nas bandas dançantes, que era ainda forte, apesar do influxo dos brancos (1998: 257).

O que interessa notar não é a novidade de Ellington, mas, ao contrário, a normalidade da presença da lógica capitalista na visão de mundo dos negros, algo inexistente no caso brasileiro.

Neste sentido, alguns dados dão conta de que as estruturas legais relativas à produção musical eram de conhecimento dos negros, que a usavam em benefício próprio. Ted Gioia narra dois casos anteriores à virada do século XX.

Os ritmos de ragtime têm seu início considerado já na primeira metade do século XIX, mas a primeira peça de ragtime é geralmente reconhecida como sendo ‘Mississipi Rag’ (1897), composta por William Krell. Mais tarde, no mesmo ano, Tom Turpin se torna o primeiro compositor negro a publicar uma composição de ragtime com seu trabalho ‘Harlem Rag’ (1997: 21, 22).

E, ainda mais marcante, em relação ao negro Scott Joplin:

Por volta de 1897, Joplin compôs ‘Maple Leaf Rag’, uma composição que logo se tornaria na mais famosa peça de ragtime de seu tempo. Apenas dois anos depois John Stark publicou o trabalho e no primeiro ano apenas 400 cópias foram vendidas. Mas no outono de 1900, ‘Maple Leaf Rag’ entrou no gosto geral do público, se tornando, finalmente, o primeiro pedaço de papel a vender mais de m milhão de cópias.– um número impressionante quando se percebe que havia menos de 100.000 músicos profissionais e professores de música nos Estados Unidos na época. (1997: 24).

Nas duas citações, a indústria da música se desenvolve como força econômica nos Estados Unidos antes da indústria fonográfica e do rádio, através das editoras que, aliás, até hoje têm papel fundamental no comércio deste setor. E, já neste momento, de alguma maneira, o negro tem sua participação, diferentemente do Brasil, onde as estruturas culturais eram dominadas por uma pequena parcela da população – branca e de classe alta – que tinha poder suficiente para dificultar não apenas o acesso do negro a essa indústria, mas mesmo a possibilidade deste conhecer seus fundamentos. Se, portanto, Joplin já ganhava dinheiro com uma folha de papel, no Brasil o presidente da entidade responsável (SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) por coletar e distribuir direitos autorais, Paulo Magalhães, chegava a propor que esta “não deveria abrigar ‘negros analfabetos’”. (Caldeira, 2007: 38).

Esta diferença de tratamento entre os dois países só era possível pelo fato de haver um capitalismo avançado nos Estados Unidos (em contraposição ao dependente brasileiro), mais à semelhança da revolução burguesa européia, que se voltava para o investimento interno e não para sua exploração externa, somado ao fato de que o negro norte-americano conseguiu uma emancipação social relativamente maior do que a do brasileiro. Isso permitiu uma maior inserção do primeiro na indústria cultural nascente. O que argumentamos, portanto, é que a modernização norte-americana, impulsionada por um capitalismo avançado, ao contrário da modernização conservadora de capitalismo dependente brasileiro, serviu-se de uma troca mais intensa entre as classes, o que exigiu que as estruturas criadas levassem em consideração essas diversas classes. Trataremos disso com mais atenção a frente.

Antes precisamos retirar uma impressão que possa ficar deste texto. É importante notar e afirmar que ainda assim a situação do negro norte-americano não era nem de longe comparável àquela do branco. Ted Gioia nos traz uma boa visão sobre essas diferenças, a partir da análise que faz da ascensão da primeira estrela midiática do jazz: o branco, classe média, Benny Goodman. Citamos o autor:

É importante reconhecer as vantagens aproveitadas por Goodman e outros líderes de banda brancos durante a era. Ao contrário dos líderes de banda negros eles eram prontamente aceitos no alto circuito americano. Eles, geralmente, aproveitavam melhores acomodações nas turnês, recebiam melhores pagamentos e tinham carreiras mais seguras. Eles não eram forçados a sofrerem as indignidades do racismo que mesmo os finos dos músicos negros sofriam regularmente. Tampouco eles encontravam suas músicas “emprestadas” por outros – tanto em versões ´covers´ reconhecidas quanto simplesmente roubadas – um processo familiar a [Fletcher] Henderson e muitos outros aristas Afro-americanos do jazz. Todas juntas, essas eram grandes vantagens para um músico branco que tentava construir uma carreira no jazz naquele período. Henderson, ainda que tivesse sido muito mais ambicioso e focado em ganhar a aclamação popular, dificilmente poderia se comparar ao destaque a que Goodman trouxe a swing music, ainda que apenas por essas razões. (1997: 142).

O que ocorre, portanto, é uma clara diferença de oportunidades entre brancos e negros norte-americanos, como ocorre no Brasil. No entanto, ao contrário daqui, nos Estados Unidos havia uma oferta tão vasta, que os negros, em alguns momentos, encontravam caminhos possíveis.

Esses caminhos também devem ser entendidos por um outro elemento fundamental: a existência de mais de um centro econômico e cultural nos Estados Unidos, em oposição ao Brasil, restrito no começo do século XX, ao Rio de Janeiro.

Começamos esta análise por uma citação colhida no texto de Hobsbawn sobre o jazzista Sidney Bechet:

O jazz é, entre outras coisas, uma música de diáspora. Sua história é parte da migração em massa para fora do Velho Sul e é, por razões econômicas e psicológicas, feito por pessoas com asas nos pés [footloose people] que gastam muito tempo na estrada. (1998: 239).

Nova Orleans como centro econômico e cultural já não apresentava, no final do século XIX, a mesma desenvoltura de antes. A mudança do sistema econômico de produção para a indústria capitalista deteriorou, por algum tempo, a predominância econômica do sul agrário americano, migrando esta para o norte, mais desenvolvido industrialmente, especialmente a partir da Guerra da Secessão. Atrás do fluxo do dinheiro, a essa migração se juntam os músicos do sul. Eles já viam o jazz como uma possibilidade de ascensão econômica e social, como uma profissão possível de lhes trazerem fama e dinheiro. Só por isso a mudança de centro econômico se relaciona tão diretamente à mudança do centro de produção cultural do jazz. Um dado nesta questão é relevante: entre 1916 e 1919 meio milhão de Afro-Americanos migraram do sul para o norte, e outro milhão no começo da década de 20, num movimento conhecido como a Grande Migração (Gioia, 1997: 45).

No entanto, ao lado da questão econômica havia também a questão racial que, do modo como estamos tratando, não estão desligadas. As sociedades dos estados do norte norte-americanos se desenvolveram sob bases tipicamente burguesas, racionais e industriais. Nas sociedades desta região, modernas, a escravidão não teve o peso produtivo que teve nas sociedades do sul, como também o teve na sociedade brasileira. Com isso, muito embora o racismo existisse – e nós já vimos uma passagem que mostra a diferença de tratamento entre músicos negros e brancos – sua expressão não se incrustava tão fortemente nas relações econômicas. A existência de uma relação moderna de produção, capitalista, tornava necessário um mercado consumidor amplo, menos vulnerável a questões que extrapolassem o ambiente econômico. Com uma economia de consumo mais ampla, como dos estados do norte dos Estados Unidos, ainda que o espaço do negro fosse restringido, ele ainda assim era vasto. Ainda que este espaço estivesse longe da amplitude do espaço possível dos brancos, ele existia.

É dentro dessa perspectiva que o jazz migra, inicialmente para Chicago, onde os acompanhantes de banda poderiam ganhar US$40,00 por semana ou mais nos anos que se seguiram à primeira Guerra Mundial, enquanto em Nova Orleans o valor girava entre US$1,50 e US$2,50. (Gioia 1997: 76). Mas se Chicago era uma possibilidade, Nova Iorque era outra. Se Nova Iorque era a outra, a Europa, então, era uma terceira. Como bem apontou Hobsbawn “O jazz mal havia sido batizado nos EUA quando grupos com este nome já faziam turnês na Europa. Eles estavam lá desde 1917” (1998: 265). Os músicos americanos vão à Europa, sempre em busca de um mercado maior, de uma sociedade mais tolerante do ponto de vista racial e de uma visão burguesa sobre a cultura – especialmente do ponto de vista da autonomização do campo artístico – mais intensa. Alguns artistas, inclusive, chegam a se mudar para a Europa e lá se tornam consagrados. É o caso de Sidney Bechet, que “no velho mundo recebeu a adulação, a segurança financeira e aceitação social que nenhum músico negro de jazz poderia achar na música de seu país nativo (Gioia, 1997: 59)”. Louis Armstrong foi para a Europa em turnê pela primeira vez em 1932. Em 1933 ele voltou para se apresentar na Inglaterra, Dinamarca, Suécia, Noruega e Holanda. No ano seguinte fez concertos em Paris, onde passou meses, e lá chegou a gravar alguns discos (Gioia, 1997: 68-69). Do ponto de vista da consagração a Europa também foi fundamental na carreira de alguns artistas. Vale o exemplo a seguir de Duke Ellington:

Se Ellington tinha alguma dúvida sobre sua habilidade em criar um público para seus trabalhos mais sérios, a viagem da banda em 1933 para a Europa certamente o tranqüilizou. Mesmo antes da chegada de Ellington, Spike Hughes anunciava na Melody Maker que a ‘América não sabe honestamente apreciar o real tesouro que possui em Duke Ellington (Hobsbawn, 1998: 131).

A presença do jazz americano na Europa foi tão marcante que Pixinguinha, quando em 1922 esteve na França com os Batutas, conheceu lá o saxofone ao ouvir uma banda de jazz se apresentar no clube em frente ao que seu grupo se apresentava. Arnaldo Guinle o presenteou com o novo instrumento que passou a ser, mais tarde, uma das marcas registradas deste músico.

Toda essa questão sobre a existência de vários centros econômicos para a música dos negros americanos ganha mais forma quando a comparamos com o que Norbert Elias fala sobre a Europa no século XVIII. Abrimos aspas para ele:

De todas as formas, na Alemanha (Áustria incluída), como na Itália, existia a possibilidade de evitar esta extrema dependência [dos músicos em relação às cortes], pois os músicos tinham a oportunidade de se porem a serviço de outro senhor se se sentissem insatisfeitos com o que tinham em um determinado momento. Isto se devia, em primeiro lugar, a particular estrutura de poder nestes países (e não precisamente à ascensão da burguesia). (…). Enquanto nos países centralizados mais cedo, especialmente França e Inglaterra, já havia a partir do século XVII uma única corte que superava em poder, riqueza e peso cultural a todos os demais governos da nobreza, Alemanha e Itália estavam desagregadas em um quase incontável número de establishments cortesãos ou em cidades orientadas no estilo cortesão. (Elias, 2002: 48).

A afirmação de Elias sobre as oportunidades dos músicos (ele trata especificamente de Mozart em seu texto) em se afirmarem profissionalmente nas cortes européias do século XVIII nos parece ser um belo paralelo do caso que tratamos. Muito embora a razão da profusão de centros seja completamente diferente, o fato é que os músicos americanos do começo do século XX têm uma situação parecida com a dos músicos alemães e italianos do século XVIII. Ambos possuem diversos mercados para suas afirmações artística e financeira, o que lhes dava maiores possibilidades e, ao mesmo tempo, maiores liberdades em ver na música uma possibilidade de ascensão social. Assim, muito embora houvesse incompreensão e preconceitos nesses diferentes mercados (Mozart sofreu preconceito quanto sua origem social e incompreensão quanto a suas inovações musicais; os negros norte-americanos foram constantemente vítimas de racismo e também não tiveram sua música compreendida imediatamente pelos diversos mercados em que estiveram) a variedade desses gerava oportunidades para a circulação, e, portanto, para finalmente algum tipo de estabilidade (financeira e artística) para os músicos. Essa situação se opõe ao caso brasileiro, que no paralelo que fazemos se assemelha ao que Elias descreve sobre a França e a Inglaterra. Os músicos brasileiros, no começo do século XX, tinham apenas o Rio de Janeiro como centro cultural e econômico – ainda assim extremamente limitado – do país. Portanto, estavam amarrados às convenções desse local e a sua ideologia. O fracasso no Rio de Janeiro fechava as portas para qualquer outra tentativa em se estabilizar no mundo musical em outro lugar. E, claro, o fracasso do negro era o mais constante. Tanto é verdade que vários músicos negros do começo do século XX praticamente desapareceram do cenário musical por décadas, como Ismael, Pixinguinha e Cartola, para darmos apenas três exemplos.

Assim, muito embora as oportunidades dadas aos músicos negros fossem desiguais em relação aos brancos tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a organização econômica do segundo país oferecia mais possibilidades a seus músicos de superarem algumas das barreiras estabelecidas pelas questões sociais e raciais. Se é bem verdade que o primeiro disco comercial de jazz foi gravado por um grupo de brancos de Nova Orleans (Original Dixieland Jazz Band) (Gioia, 1997: 37)), também é verdade que os negros americanos do começo do jazz conseguiram um acesso à indústria cultural muito maior do que os negros brasileiros. Como esperamos ter deixado claro, o processo de modernização norte-americano está embasado num capitalismo avançado, no qual o controle sobre as estruturas é frágil fora das relações econômicas. Isso não significa a ausência de racismo, como também mostramos, mas sim que este racismo perverso não é suficiente para impedir que os negros consigam acesso à indústria fonográfica, embora não seja um acesso suficiente. Diferentemente, no Brasil, por seu capitalismo ser dependente, por sua modernização ser levada a cabo por uma classe conservadora (oligárquica travestida de burguesa), as restrições não são apenas econômicas, mas também morais. O poder restritivo se espalha pela sociedade e se internaliza nos próprios negros (para pensarmos com Foucault) a quem não é dada a possibilidade de pensar na música como meio de ascensão social. Neste sentido, as questões morais, no Brasil, não são sobrepostas pelas econômicas, como nos Estados Unidos, mas se misturam com elas, num fenômeno no qual dois tempos (colonial e moderno), duas classes dominantes (oligárquica e burguesa) e duas classes dominadas (escravos e trabalhadores precariamente assalariados) se confundem nos mesmos atores e momento. É essa estrutura também que determina a aproximação das classes altas à música dos negros que ocorreu nos dois países, mas de forma diferente.

E este é o ponto nodal que seguimos para tratar do segundo aspecto de nosso texto. A tese que sustentamos aqui é que enquanto no Brasil essa aproximação se deu em virtude de uma necessidade de formação de identidade nacional, nos Estados Unidos essa se dá por questões identitárias restritas, internas às classes médias e altas.

Aproximação das classes médias e altas à música popular

Retomando a especificidade da revolução burguesa no Brasil, notamos que ao trazer para dentro do capitalismo nascente sua estrutura colonial, a elite foi capaz de manter a liderança da economia brasileira, dispondo de esforços e sacrifícios (sacrifícios estes, inclusive, percebidos no fracasso de vários elementos desta elite que, ao contrário dos fazendeiros de café do oeste paulista, não conseguiram se adaptar aos “novos tempos”), pois, afinal, como diz Florestan Fernandes, “não há como fugir à constatação de que o capitalismo dependente é, em geral, um ‘capitalismo difícil’, o qual deixa apenas poucas alternativas efetivas às burguesias que lhe servem, a um tempo, de parteiras e amas-secas” (Fernandes, 2004b: 440). Mas se o sucesso foi alcançado de um lado, de outro gerou uma lacuna simbólica. Este modo de revolução burguesa não foi capaz de criar, dentro da elite, símbolos pertinentes à modernidade. Isso porque os símbolos que essa classe possuía, como seus próprios se relacionavam a um passado pré-capitalista (rural, escravista), contrário às necessidades que a modernidade lhe impunha, já que condicionada a um mercado internacional. Com isso, do ponto de vista intra-classe, a elite encontrou sua solução no mimetismo das burguesias européia e norte-americana (Schwartz, 1986). A cópia se tornou prática comum a esta elite que, com isso, buscava, para os olhos internacionais e para dentro de suas próprias relações, um apagamento dos traços tradicionais e uma inserção simbólica num tempo novo.

Contudo, este tempo novo se refere a uma expansão das relações sociais – na direção externa (mercado internacional) e interna (às classes dominadas) – e a um sistema mais complexo de gerenciamento destas (tanto do ponto de vista político, como econômico e simbólico) por parte da elite. Dentro dessa complexidade que a modernidade gera, a manutenção do poder por esta elite leva à necessidade de diluir seus interesses em interesses nacionais (aparentemente gerais, portanto) sem, contudo, deixar de ter sobre eles o domínio. Para tanto, surge (mais do que por outros motivos econômicos, já que a questão de geração de mercado consumidor homogêneo não fazia parte das principais preocupações de uma economia basicamente exportadora) uma entidade histórica que teria as condições de fazer essa passagem. Esta entidade é a nação. “Somente ela poderia dar suporte material, social e moral à existência e à continuidade de um Estado independente” (Fernandes 2006: 76).

Pensando apenas na esfera simbólica desta criação, nota-se então a lacuna da qual a elite se viu diante. O modo como esta liderou a inserção do Brasil na modernidade a deixou desprovida de uma identidade que pudesse utilizar para representar a nação moderna brasileira. Os símbolos que dispunha não serviam a esta tarefa, pois ou se remetiam a um tempo pré-moderno, ou a símbolos de outros países, com os quais não podia articular em nível nacional em um momento em que a nação também se formava em oposição simbólica a outras nações.

Assim, tensionada entre uma necessidade (criação da nação) e uma dificuldade (ausência de símbolos próprios para representá-la), a elite brasileira se viu obrigada a buscar aspectos da identidade nacional em um local em que, ao mesmo tempo, não correspondesse àquela modernidade copiada do estrangeiro e que possibilitasse um apagamento das marcas de exploração do período colonial. Com isso, ainda haveria um outro ganho, pois seria possível tornar este período colonial, em uma perspectiva histórica ideológica voltada para o passado a partir do presente, em um momento marcado não pela exploração escravista, mas pela cordialidade e pela paz social, ao ponto de se evitar qualquer reclame por uma nova estrutura social a partir daquela classe oprimida. Desse modo, se alcançaria, ao mesmo tempo, uma identidade necessária e à disposição do domínio da elite e uma amainada resistência a partir do povo. Tendo em mente que essa “minoria privilegiada encara a si própria e a seus interesses como se a nação real começasse e terminasse nela” (Fernandes, 2004c: 256), a elite brasileira buscou retirar das classes mais baixas suas possíveis identificações e as transportar a um âmbito mais amplo, nacional, no qual ela tinha pleno controle político e econômico.

É neste sentido que se dá a aproximação da elite brasileira à cultura popular e especialmente à música que, num país onde ainda em 1920 75% da população era analfabeta (Ortiz, 2001: 188), fez as vezes que a língua impressa fez em outros locais, fixando e compartilhando símbolos (Anderson, 1991). É justamente no samba do Rio de Janeiro onde estão sintetizados os discursos simbólicos buscados por essa elite (e estruturados por intelectuais como Nina Rodrigues, Afonso Vianna, Sílvio Romero, Manoel Bonfim, Gilberto Freyre, etc) da miscigenação racial e da integração entre o rural e urbano, do folclore e do popular, do tradicional e do moderno[iii].

Vemos assim que a crescente importância do termo “samba” se faz em duas vertentes concomitantes, folclórica e popular: na primeira, substitui o batuque, na segunda, maxixe e tango. (...). Mas essa convergência do folclórico e do popular numa mesma palavra expressa uma nova convergência ideológica que se forja entre as duas áreas. Quando ela se consuma, o samba popular beneficia-se de toda a carga positiva atribuída por boa parte dos intelectuais brasileiros desde os anos 1930 ao folclore (Sandroni, 2001: 97).

É importante notar a aproximação das classes dominantes ao samba não se deu sem conflitos dentro desta própria classe e, já no Estado Novo, dentro do governo. José Miguel Wisnick (2004), José Ramos Tinhorão (1991), o próprio Carlos Sandroni em texto acima citado (2001), entre vários outros autores, apontam este conflito. Contudo, o que nos importa aqui notar é que o samba acaba por se tornar uma música que marca a identidade nacional, sendo que o forjamento desta identidade é uma preocupação da elite. Portanto, o que queremos perceber não é a resistência ao samba (embora não a neguemos, evidentemente), mas as razões para sua aceitação. De novo, assumimos que este artigo tem uma argumentação interessada.

Os símbolos assim encontrados não poderiam, contudo, ser lançados como identidade nacional se não passassem antes por uma modificação empreendida pela elite, ao ponto de perderem seus valores de origem e se apresentarem como atemporais e desapropriados. Antes do Estado Novo – que por força de lei terá um papel preponderante na circunscrição do samba aos interesses temáticos “nacionais” – a própria indústria fonográfica (e ainda o rádio) foram capazes de conter os “arroubos” dos negros. Ao expulsá-los de seu modo de produção, a indústria fonográfica manteve a idéia de “autenticidade” de suas músicas, mas uma “autenticidade” cantada por artistas capazes de representar os ditames morais da elite. É neste momento que não a música de Sinhô, Cartola, Ismael ou Wilson Batista se tornam marca da identidade nacional, mas sim os sambas de Noel, Ary, Carmen Miranda, Almirante, Mário Reis, Chico Alves, etc, artistas brancos e de classe média, capazes de empreenderem batalhas em favor de um samba mais comportado (lembremos da famosa querela entre Noel e Wilson Batista). Se as parcerias destes com os negros existia e era profícua (Ismael foi um dos parceiros mais constantes de Noel), o importante é notar que as músicas só chegavam à indústria fonográfica pelas mãos e vozes destes artistas brancos e, portanto, muitas vezes adaptadas ao interesse “nacional”.

Com isso, podemos dizer que a aproximação da elite à música dos negros se deu por uma necessidade desta em forjar uma identidade nacional, sendo que os símbolos para tanto só poderiam ser encontrados – como argumentamos – nesta música. Contudo, foi necessário um trabalho de “purificação” do samba, sendo um dos instrumentos para tanto a indústria fonográfica que não inseriu os negros em seus quadros artísticos, mas sim os cantores brancos de classe média de relações próximas com estes negros.

Seguindo em nossa comparação, partamos agora para entender o caso norte-americano. Comecemos com duas citações retiradas do livro Jazz and White Americans, de Neil Leonard.

Nos anos após 1918 um crescente número de americanos achavam muitas normas tradicionais inadequadas para os problemas e desafios do século XX. O declínio da fé nestes valores era uma questão complexa. Alguns dos eventos históricos que levaram ao declínio foram: o desaparecimento da fronteira nos anos noventa; a crescente maré de imigrantes (até 1914) que não estavam, freqüentemente, acostumados, ou não eram simpáticos, aos valores tradicionais; o crescimento das cidades e suas populações não absorvidas socialmente; a elevação da ciência e da indústria; e a crescente influência do darwinismo, socialismo e freundianismo. Muito embora tenha havido muitas chances antes de 1914, a Primeira Guerra Mundial e o fracasso da paz dramatizaram a quebra dos valores tradicionais em sentidos que ajudaram a vir à tona uma revolução em costumes e em valores morais ainda mais ampla (1962: 48).

E ainda:

A quebra dos valores tradicionais levou a uma troca de normas entre essas classes [alta e baixa] que tendeu a borrar a linha [divisória]. Muitos dos bem de vida se tornaram insatisfeitos com as normas estéticas tradicionais e cresceram cada vez mais interessados em arte e entretenimento normalmente associados a subculturas. Ao mesmo tempo os detentores das subculturas achavam a arte dos tradicionalistas, das classes altas, cada vez mais acessíveis. (…).

As razões para o interesse das classes altas pela arte e pelo entretenimento das classes não são sempre evidentes. Oscar Handlin parece estar certo, contudo, em sugerir que como as pessoas da classe alta perderam a fé em padrões tradicionais, elas adquiriram uma lacuna em suas vidas. Num esforço de preenchê-la elas procuraram se exporem aos valores das subculturas que pareciam lhes oferecer divertimento, excitamento, romance e um contato mais genuíno com a realidade e a identificação com arte (Idem: 49).

Portanto, o que existe na questão simbólica das classes altas norte-americanas é uma descrença nos valores tradicionais, importados da Europa, e uma busca por uma quebra destes valores que pudesse representar essa classe em uma sociedade moderna, capitalista, cujo avanço levava a um consumismo no qual a quantidade de bens disponíveis (simbólicos e econômicos) era fundamental. Buscando um pouco da argumentação de Pierre Bourdieu, podemos dizer que os bens simbólicos disponíveis na cultura norte-americana deixaram de ser raros, não mais distinguindo seus detentores socialmente. Era necessário para a classe dominante buscar outros bens, dos quais ainda poucos dispunham, para que, por sua raridade, mantivesse-se simbolicamente a diferenciação social. (Bourdieu 2002).

No entanto, entre os vários símbolos possíveis de apropriação, o jazz apresentava um valor especial. De alguma maneira havia nele uma idéia de revolução, de quebra de padrões sociais (pela presença de negros), estilística (pela novidade sonora, que não seguia os padrões europeus de música) e de comportamento (ao invés das sisudas salas de concerto, ambientes descontraídos, ofertando bebidas alcoólicas, num momento em que eram proibidas). O jazz, portanto, apresentava uma aura nova, de liberdade, que quebrava com os padrões da burguesia velha e decadente, que vinculava sua imagem a uma idéia racional de vida, sob a qual a retidão econômica era vista como um valor positivo, ascético, enquanto que o gasto era tratado com sinal negativo[iv]. Uma idéia que não se adaptava aos novos tempos, do surgimento de uma indústria de entretenimento que despersonalizava e se voltava para a multidão tornada em massa, do espetáculo do cinema, das grandes lojas de departamento e, portanto, do consumismo. Um novo tempo no qual o direito ao excesso pedia licença às restrições de comportamento e à avareza do capitalismo acumulativo.

Não à toa, os indivíduos da classe dominante que se voltam ao jazz são os jovens das grandes cidades, que se opõem a seus pais e às estruturas sociais defendidas por eles, até o limite em que sua condição de classe dominante não fosse afetada. Quanto a essa oposição, vale uma citação bastante elucidativa de Ted Gioia sobre o Swing Music:

Nós vamos tão longe ao ponto de chamar esta música de rebelião? Ela foi assumida por uma nova geração, procurando sua própria identidade, desenvolvendo seu próprio modo de vida. Em uma era de propaganda em massa do entretenimento, o potencial para essa música simbolizar, estabelecer e comunicar um estilo de vida (agora, ele mesmo, um conceito importante) tornou-se um dos atributos definidores de novos estilos. Gravadoras, performers, bandas e estações de rádio: todos tinham cada vez mais um papel emblemático em definir cada nova geração em contraste com a anterior. Este aspecto supra-musical do jazz, que nós primeiro percebemos nas atitudes dos jazzistas broncos de Chicago da década de 1920, se tornou um fenômeno cultural mais amplo com a febre do swing da década de 1930. Esta ruptura inicial entre gostos musicais dos jovens e dos velhos gradualmente levaria a uma enorme fenda uns vinte anos mais tarde com o advento do rock and roll (1997: 146).

E outra de Neil Leonard:

A aceitação do ‘jazz’ nos anos 1920 seguiu o padrão de outras formas de arte e entretenimento. Membros das altas classes foram às partes mais pobres da cidade ouvir a nova música e, ao mesmo tempo, essa foi importada para seções das classes médias e altas. Se nas partes pobres, de onde ela veio, ou em um ambiente mais da moda, aqueles que abraçaram suas formas indissolúveis quebraram de todo coração com um grande número de valores tradicionais. Essas pessoas eram, na maioria, adolescestes se revoltando contra as convenções (1962: 52).

Portanto, a revolta da nova geração da classe dominante contra os velhos costumes encontrava no jazz novos símbolos, mais adaptados ao modo de vida desta juventude. Contudo, a valorização destes novos símbolos estava restrita à manutenção da posição social desta elite e, portanto, a revolta empreendida não poderia significar qualquer mudança real na estrutura societária. Clubes se abriram apenas para o divertimento dos brancos, nos quais as orquestras podiam ser de negros, mas à platéia era vedava sua entrada, como no famoso Cotton Club.

A procura por entretenimento dos negros pelos públicos brancos logo se tornou, inevitável e fortuitamente, uma mini-indústria, um microcosmo burguês na vida noturna de Nova Iorque como um todo. Tendo um apetite aguçado por essas danças e shows, os públicos brancos começaram a procurar uma verossimilhança ainda maior nas noções que tinham da cultura Afro-Americana. Mas ainda quando iam ao Harlem para testemunhá-los em primeira mão, estes espectadores demandavam locais que protegessem sua posição de uma elite de classe governante. Neste contexto, o espetáculo grotesco de platéias só de brancos nos clubes do Harlem havia nascido. Um arranjo musical no qual a aproximação e a distância sociais poderiam coexistir (Gioia, 1997: 125).

Portanto, o que os brancos americanos buscavam não era uma mistura entre as culturas que levasse ao forjamento de algo híbrido, como ocorreu no Brasil (muito embora essa hibridez fosse controlada pela elite) na formação de sua identidade nacional. Desejavam, sim, uma convivência, mas sob certa distância, para que pudessem adquirir símbolos distintivos novos que os opusessem a uma imagem de burguesia que não mais servia aos propósitos desses jovens. Não há, portanto, uma busca de identidade nacional, como no Brasil. O jazz não é colocado como um baluarte da identidade americana, restringindo-se a ser, muitas vezes, apontado como a música americana por excelência. Essa diferenciação é importante do ponto de vista mais amplo, pois esse consumo de certa forma meramente receptivo do branco americano quanto ao jazz permitiu que o desenvolvimento dessa música não se modificasse por questões ideológicas, mas meramente de mercado. Não há, quanto ao jazz, qualquer sinal de interferência em criações que fossem ofensivas à classe branca ou à relação de forças dominadas por esta classe, ao contrário do Brasil, onde temáticas como a do malandro, ou mesmo do negro, tiveram de ser substituídas por trabalhismos e aquarelas do Brasil. E neste processo permeia a questão do modo de modernização de cada país. Enquanto no Brasil este mesmo foi conduzido por uma classe – cujo passado era carregado de imagens anti-capitalistas (do ponto de vista mais reacionário) – lançada à modernidade de maneira desajustada, nos Estados Unidos, a partir da Guerra da Secessão, há justamente o contrário. A classe vencedora já nasce dentro de uma mentalidade burguesa que, portanto, já firma os rasgos identitários americanos de início, devendo estes serem adaptados (e não trocados), conforme a mudança de fase do capitalismo. Por isso, se compreende que a ida da classe dominante à música americana não se deu por razões mais amplas do que uma briga por poder simbólico dentro de sua própria classe, enquanto que o mesmo movimento no Brasil se deu por uma necessidade de conformação simbólica que extrapolava a própria classe dominante e se dirigia ao domínio simbólico das outras classes por esta. Desta maneira, enquanto a presença do artista de classe baixa nos Estados Unidos era condição para a visibilidade da proposta libertária daquela elite, no Brasil a presença correspondente era dispensável, ou mesmo indesejada, pois o símbolo precisava se descolar da pessoa do criador, para poder ser apropriado por outros artistas mais aptos a forjarem a identidade nacional. Por isso faz sentido o reclame de Ari Barroso: “Expulsaram o negro da música popular brasileira!” (Cabral, s/d: 297). Ari assim gritou em 1957, mas a expulsão começou bem antes, em um processo que ele, como um dos maiores arrecadadores de direitos autorais de sua época, participou.

Condicionamento recíproco

Muito embora nossa análise tenha se estruturado tratando de dois elementos seqüencialmente, eles devem ser entendidos como totalmente condicionados. As motivações que levaram as classes altas e médias americanas e brasileiras às culturas populares condicionaram o modo como estas culturas se inseriram na indústria fonográfica. De outro lado, o diferente modo de instalação desta indústria possibilitou maior ou menor controle daquelas classes sobre aquelas culturas. Assim, embora nos dois casos o processo de exclusão das classes mais baixas (onde se encontrava a maioria negra) se realizou, no caso brasileiro ele foi mais perverso.

O fato de haver no Brasil uma indústria cultural frágil permitiu que a burguesia implementasse sua visão de mundo além do campo econômico (que geralmente condiciona esta indústria), garantindo que sua moral própria fosse atendida. Pode-se dizer que as artes no Brasil não se tornaram campos autônomos, no período em que estamos tratando, no qual surgisse uma lógica interna de valores condicionantes da produção, difusão e consagração cultural. Ao contrário, o campo artístico se atrelava diretamente a outros campos da sociedade, como o jornalismo, o funcionalismo público (que mostra uma relação com o Estado), os clubes da burguesia, etc, nos quais a elite tinha pleno controle e, por isso, condições de implementar seus interesses sem grandes contestações.

O que, contudo, precisa ser entendido é que a precariedade dessa indústria não lhe retira o valor de consagração. Ainda que poucos tivessem acesso ao disco e ao rádio (este muito mais disseminado do que aquele ainda na década de 1930), a mera existência destes condicionava a população a crer numa “verdade” que se fixava e que, se não podia comprar, acreditava em segunda mão. Num país de analfabetos, o rádio e a indústria fonográfica conseguiam, ainda que de maneira precária, atingir um número irrestrito de pessoas. No campo simbólico, estas estruturas cumpriam uma função de monopolizar a consagração, pois apenas aquela expressão referendada pelo rádio e/ou pelo disco (representativas da modernidade e, portanto, valoradas como positivas) podia ser considerada de real valia. Neste sentido, ainda assim vale para esta época no Brasil a idéia de Adorno e Horkheimer quando dizem que “o mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural” (Adorno e Horkheimer 1985: 118).

Assim, é na conjunção, no Brasil, da precariedade e o monopólio da consagração da indústria cultural que os esforços da elite em “purificar” a cultura popular, para fazer desta símbolo identitário nacional, excluem as classes dominadas do processo. Nos parece correto, então, dizer que não se pode pensar questões relativas à identidade nacional ou à indústria fonográfica no Brasil sem ao menos ter um olho voltado para a origem do processo e compreender que sua base de lançamento está embasada em um processo de exclusão.

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[i] Estamos atentos à diferença entre modernização e modernidade, mas para nossos fins os termos podem ser tratados conjuntamente.
[ii] SCHOENHERR, Steve, “Recording Technology Industry”, p. 6. (retirado do site www2.hu-berlin.de/fpm).
[iii] Indicamos sobre este ponto: de Renato Ortiz, Identidade Brasileira e Cultura Nacional e Românticos e Folcloristas; de Márcia Naxara, Cientificismo e Sensibilidade Romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX; de Dante Moreira Leite, Caráter Nacional Brasileiro; de Stella Bresciani, “Forjar a Identidade Brasileira nos anos 1920 – 1940”, in: HARDMAN, Francisco Foot (org), Morte e Progresso: Cultura Brasileira como Apagamento de Rastros; de Carlos Sandroni, Feitiço Descente; e de Hermano Vianna, Mistério do Samba..
[iv] É evidente que temos em mente A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber.

quarta-feira, 25 de março de 2009

REFORMAS

por Albano Fonseca

Há apenas uma certeza, para os cidadãos brasileiros, quanto ao Congresso e aos congressistas: que não há certeza nenhuma.

A cada dia, uma surpresa, uma novidade. Uma indecência.

Não há, praticamente, noticias sobre o Congresso ou seus membros que não se refiram a ilegalidades, a impropriedades, a malfeitorias de qualquer ordem ou em qualquer âmbito. São notícias que suplantam de muito, em volume, e em espécie àquelas inerentes à (suposta) raison d’être da instituição.

Nesse quadro abissal, dispara na frente, quer na quantidade, quer na “qualidade” dos despautérios, o Senado da República, filho espúrio, pródigo e supérfluo do Senado monárquico, constituído à feição do inglês, neste exato dia 25 de março, em 1824, quando da outorga da primeira Constituição brasileira.

Não é preciso que os “de fora” falem mal do Senado, não são necessárias investigações de órgãos independentes, o Senado é como um furúnculo que, afinal, incha, fura e a imundície aflora, vem de dentro...

E há, acima de tudo, uma questão de custo/benefício. Quanto mais se assiste, quanto mais se pensa sobre o Senado, quanto mais se toma conhecimento, sobre suas funções, seus atos e práticas, seu custo para o país e o que resulta de seu “trabalho”, mais se conclui que é uma instituição onerosa, improdutiva, negativa e, por conseqüência, DESNECESSÁRIA.

Nem se diga que não é bem assim, que há pontos positivos, que há funções inerentes e exclusivas que devem ser preservadas. Que há parlamentares de qualidade que não participam nem concordam com as mazelas.

Não.

Funções inerentes e exclusivas podem ser atribuídas ao outro órgão, a Câmara dos Deputados, igualmente legislativa, mas com maior representatividade e legitimidade. Com a vantagem, de se estabelecerem apenas quando exigidas - no formato de comissões especiais, por exemplo - e não malbaratando recursos permanente e inutilmente, como ocorre no indigitado Senado.

Mesmo que se venha a exigir uma reforma constitucional.

Quanto aos senadores, de qualquer partido, procedência e antecedentes políticos, profissionais, culturais, sociais, entendo que são “farinha do mesmo saco”, cúmplices e acobertadores solidários, portanto igualmente responsáveis.

A nenhum se poderá atribuir desconhecimento, ignorância, ingenuidade. Ninguém lá é “bonzinho”, ninguém lá é um anjo.

Pode-se dizer o mesmo do funcionalismo de alto nível da “casa”, o que significa dizer da quase totalidade de seus membros, dados os níveis salariais e outras vantagens lá vigentes. As “excelências quase nobiliárquicas” da republica brasileira – que paradoxo! - generosamente lhes outorgaram essas vantagens, sponte propria ou docemente constrangidas por ligações de família e/ou interesses regionais, políticos, econômicos. Há um entranhamento muito forte e auto-identificado, no conceito druckeriano, entre o funcionalismo e os mandatos que é praticamente impossível desvincular um dos outros.

Há muita coisa a justificar juízos depreciativos sobre o Senado e os senadores. Mesmo um desavisado ou pouco informado faria, em um minuto, uma lista extensa das anormalidades conhecidas ou veiculadas pelos meios de comunicação, à quase todos os dias.

Bradam aos céus, também, a desfaçatez, o cinismo, a impudência com que as lideranças e os demais ungidos da República – que desrespeitam dia a dia – explicam, justificam e, até mesmo, alardeiam seus malfeitos, suas irregularidades, seus crimes.

Os senadores, acumpliciados com grande parte do funcionalismo, se constituem atualmente em uma societas sceleris. Associados para delinqüir, praticam crime continuado, razão bastante a justificar uma completa reforma ou, melhor ainda, sua extinção.

(Cabe notar que a medicina e os médicos não curam à doença, curam ao doente. O doente é a República, o Senado é a doença)

Mas sempre há algo a aproveitar, quando se busca bem. É a lição que vem da TV Senado.

A TV Senado é a duplicação desnecessária, perdulário, arrogante e provinciana de um meio que poderia perfeitamente ser compartilhado por todas as esferas da administração pública, como se faz com a Voz do Brasil. A cada qual seria atribuído um canal e a locação de tempo necessária (também seria redundante, é claro, o Senado não tem relevância e devemos acabar com ele o quanto antes seja possível).

A lição é a que a TV Senado permite um vislumbre da indigência moral e intelectual, do desprezo pela coisa pública, do aproveitamento partidário e pessoal, da autopromoção presunçosa, histriônica, grosseira, patética ou mesquinha à custa do Tesouro, sem contrapartida que a justifique.

O que dizer dos tartufos que se sucedem na fogueira de vaidades do palanque eletrônico – mesmo que de parca audiência, como é o caso, afetados e super-maquiados, untuosos, melífluos, pretensiosos, palavrosos, ora metidos a intelectuais, ora grosseiros, agressivos, prepotentes, como o Álvaro Dias, o Mozarildo, o Mão Santa, o Suplicy, o Tião, o Mario Couto e o Arthur Virgílio, o Heráclito, o Demóstenes, o Agripino... e sem adjetivar (precisa?) o Renan, o Sarney, o Wellington, o Papaléo, o Almeida Lima etc.?

Como o buraco é mais em baixo e não se espera que políticos eleitos desconstruam suas próprias mamatas e os seus privilégios, não há mais nada a fazer que não seja a própria cidadania tomar as rédeas às mãos e partir para o corpo a corpo, para o “jogo bruto”, para a ação que, certamente, não será apoiado nem pelo Legislativo, nem pelo Executivo e, menos ainda, pelo Judiciário.

Para isso mesmo veio e se presta a Internet. É por este meio que teremos que nos articular para o debate e a posterior coleta de assinaturas para a proposta de ação de iniciativa popular convocando a uma nova Constituinte dedicada (com os constituintes sendo eleitos exclusivamente para isso), que reformará as instituições da República. Precisamos de um novo Congresso sem o Senado, precisamos de uma nova forma de elegê-lo, precisamos regulamentar os mandatos e as eleições, as reeleições e a quarentena obrigatória depois da reeleição permitida, para os cargos eletivos, a “não comunicação” entre os eleitos para o executivo e o legislativo, precisamos introduzir a impressão do voto na urna eletrônica para constitucionalizá-la devidamente, precisamos, enfim, de tantas coisas que teremos que começar a discutir desde já.

Em novas mensagens, irei detalhando meus pontos de vista sobre os diversos temas levantados. Espero divergência, contradição, argumentos, indicações, até mesmo a contraposição mais veemente e agressiva, espero de coração e mente abertos. Só não espero indiferença.

É o que proponho, que pelo menos tentemos utilizar a força e os meios que temos para evoluir e dar mais qualidade às nossas vidas e às vidas dos demais, especialmente às daqueles a quem amamos.

Postado em 25 de março, 2009

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quarta-feira, 18 de março de 2009

América Latina: La muerte de Che Guevara - Segunda Parte

Foto: Jornal A Tribuna - 11 de outubro, 1967

CONFIMAÇÃO OFICIAL DA MORTE DE GUEVARA
La Paz, 10 – (U.P.I.) – As Forças Armadas anunciaram, hoje, formalmente, a morte de Ernesto “Che” Guevara, revolucionário profissional e antigo homem de confiança de Fidel Castro, durante batalha com patrulhas bolivianas treinadas por especialistas norte-americanos.
Guevara, de 39 anos de idade, foi um dos sete guerrilheiros mortos num choque verificado domingo último.
Guevara morreu comandando um bando guerrilheiro de uns 20 a 25 homens, isolados de grupo similar, em mãos de uma força de 184 “batedores”.

IDENTIFICAÇÃO
A identificação positiva do corpo foi realizada por meios científicos no Valle Grande para onde foram conduzidos para exame os restos dos guerrilheiros mortos – segundo informaram os funcionários.

Jornalistas que viram o corpo no necrotério de Valle Grande disseram que Guevara foi baleado na garganta e na virilha e que suas pernas estavam quase decepadas pelo fogo de metralhadora.

QUATRO CUBANOS
O anúncio diz que quatro dos sete guerrilheiros mortos domingo último eram cubanos, acrescentando que os “batedores” se apossaram do diário de guerra de Guevara, além de armas e equipamento em curso do choque.

O Exército informou que quatro “batedores” morreram e quatro ficaram feridos na luta, descrita como encarniçada e cuja duração foi de várias horas.

ANÚNCIO OFICIAL
O comandante-chefe das Forças Armadas, general Alfredo Ovando, fez em Valle Grande o anúncio oficial da morte de Guevara, que usava o nome entre os guerrilheiros de comandante “Ramon”.

O corpo de Guevara trajava uniforme verde oliva roto e sujo. O rosto estava parcialmente queimado pelo sol e os pés protegidos por mocassinos em mau estado e meias verdes.

Os jornalistas observaram que Guevara perdeu peso.

Houve versões diferentes de como morreu Guevara; uma versão expressou que a morte ocorreu depois do tiroteio de domingo, ao passo que outra indica que ocorreu ontem, depois do interrogatório.

A declaração oficial não esclareceu imediatamente as discrepâncias.

Os jornalistas informaram em Valle Grande que o helicóptero no qual foi transportado o corpo de Guevara esteve a ponto de ser destroçado por populares que queriam arrebatá-lo dos militares. Então o general Ovando interveio pessoalmente.

FIM DA GUERRILHA
Ovando declarou que a morte de Guevara significa que o “aniquilamento” do movimento guerrilheiro na Bolívia, que ao que foi dito, vinha sendo desde março dirigido pelo cubano nascido na Argentina.

Não obstante, Ovando admitiu que outro pequeno grupo de uns “seis comandos” – segundo disse, estava sendo procurado ainda.

O diário de guerra de Guevara, segundo notícias de Valle Grande, foi encontrado em sua mochila, onde também conduzia rações.

Um parágrafo do diário, segundo foi dito, contem este trecho: “Francamente não esperava que o Exército boliviano reagisse como o fez”.

PRIMEIRA IDENTIFICAÇÃO
A primeira identificação positiva de Guevara foi efetuada pelo coronel Joaquim Zenteno Anaya, ex-ministro do Exterior, que comandava a unidade de “batedores” que estabeleceu o contato fatal com Guevara.

Zenteno disse que estava certo de que se tratava de Guevara, devido a que as duas unidades sob seu comando estiveram seguindo muito de perto o cubano, durante muito tempo.

O governo enviou imediatamente por via aérea uma equipe de 22 médicos, seis jornalistas e mais gente, a fim de confirmar a identificação levada a efeito no Valle Grande.

JORNALISTAS CONFIRMARAM
La Paz, 10 – (U.P.I.) – Dois jornalistas bolivianos que tiveram acesso ontem à noite ao corpo do guerrilheiro que pode ser Ernesto “Che” Guevara afirmaram hoje que não têm dúvidas de que se trata do ex-ministro das Indústrias de Cuba.

SILES ZUAZO LAMENTA
Montevidéo, 10 – (U.P.I.) – O ex-presidente boliviano Hernan Siles Zuazo, atualmente exilado no Uruguai, lamentou, hoje, a morte de Ernesto “Che” Guevara, afirmando que lastimava “o desaparecimento da figura mais imaculada da juventude revolucionária do mundo”.

“Caramba” exclamou Siles Zuazo, quando a U.P.I. lhe deu a conhecer as últimas notícias, após o que pediu que lhe fossem lidas por várias vezes notícias recentes.

O ex-presidente boliviano parecia abatido e murmurava repetidamente “caramba”.

“A morte vem estremecendo a minha pátria há tempos”, declarou a seguir. Este não é o momento de analisar os fatores que afetam o dramático processo boliviano. O desaparecimento de Guevara é a desaparição da figura mais imaculada da juventude revolucionária do mundo”.

Siles Zuazo vive no Uruguai desde a queda do ex-presidente do seu país, Victor Paz Estensoro.

PAI NÃO ACREDITA
Buenos Aires, 10 – (U.I.P.) – O pai de Ernesto Guevara declarou hoje não crer ainda que seu filho morreu e que talvez vá a Bolívia para provar o que diz.

Falando com patente agitação, o arquiteto Ernesto Guevara, pai, disse:
“Tudo é uma patranha do governo da Bolívia para evitar que os membros desse país se unam a revolução”.

No que tange ao corpo apontado oficialmente como o de “Che” pelas autoridades bolivianas, seu pai exclamou:
“Não creio que esse homem seja meu filho”.

Guevara pai disse a U.P.I.:
“Meu filho Ernesto está vivo embora não conte para ninguém que se encontra na Bolívia”.
Disse também que à noite falaria com os seus demais filhos em Buenos Aires para estudar as notícias da Bolívia e acrescentou: “Se o governo boliviano insistir em sua versão, veremos a possibilidade de viajar á Bolívia para estarmos seguros.

A notícia da morte de Guevara foi motivo para manchetes tanto dos matutinos quanto dos vespertinos, “La Razon”, jornal de grande circulação, saiu depois do anúncio oficial, com manchete dizendo: “Comoção na América....anunciado oficialmente na Bolívia que “Che” Guevara morreu em combate”.

ÚLTIMAS PALAVRAS
Valle Grande, Bolívia, 10 – (U.P.I.) – “Sou o “Che” Guevara e fracassei”.

Estas foram as últimas palavras pronunciadas pelo famoso guerrilheiro argentino-cubano, ao tomar mortalmente ferido, domingo à tarde, segundo declarações feitas pelo próprio chefe das Forças Armadas bolivianas, general Alfredo Ovando Candia.

O general Ovando fez o relato da forma como morreu Guevara, quase defronte ao seu cadáver, estendido sobre um tanque, na lavanderia do Hospital do Senhor de Malta, nesta pequena localidade do oriente boliviano.

Com um sorriso tenuemente insinuado em seus pálidos lábios, num rito que não podia dizer que se era de ironia ou de cinismo, o cadáver semidesnudo estava coberto apenas por uma túnica verde oliva, uma calça remendada e sem meias.

As autoridades disseram que ontem se injetou formol no cadáver para preservá-lo, mas o inclemente clima tropical não respeitou esta medida e o corpo começava a exalar um forte cheiro odor que tornara ainda mais macabra a cena.

Outros dois cadáveres colocados em mesas improvisadas da mesma sala, pertenciam aos guerrilheiros apelidados de “El Moro” e “El Chino”, mas ninguém lhes dava atenção.

Todos os olhos estavam fixos em Guevara e até mesmo os raios de luz pareciam persegui-lo.
Era visível uma bala no tórax e outra na região inguinal.

SEPULTAMENTO
La Paz, 10 – (U.P.I.) – Informações de fontes chegadas ao Palácio Presidencial indicaram que o primeiro-mandatário, general Renê Barrientos, ordenou que o corpo do guerrilheiro cubano-argentino Ernesto “Che” Guevara seja enterrado em Valle Grande, e não trazido à La Paz, como se havia informado inicialmente.

Segundo os informantes, Barrientos considera que Guevara deve ter funeral como o de qualquer dos outros guerrilheiros que caíram na luta contra as Forças Armadas da Bolívia.

Informantes autorizados chegados ao Palácio Presidencial indicaram que a tarefa de identificação do corpo de Guevara foi realizada da maneira mais minuciosa e seguindo as mais modernas técnicas científicas.

Os mesmos informantes disseram ser possível que as autoridades e o Exército boliviano houvessem contado nesta tarefa com a ajuda de técnicos do Serviço Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA).

Informações anteriores indicavam que um grupo da CIA viajara ontem rumo a Valle Grande.

UMA CICATRIZ
Uma cicatriz na mão esquerda, produzida por um ferimento sofrido em Sierra Maestra, em Cuba, era outro dos pormenores característicos da figura de “Che” Guevara.

SILÊNCIO EM HAVANA
Havana, 10 – (A.F.P.) – A imprensa cubana não fez menção hoje á morte de Ernesto “Che” Guevara. Também em seus boletins locais as rádios nada noticiaram. Uma emissora referiu-se a morte do guerrilheiro num programa para a América Latina, ouvido em Miami.

A Rádio de Havana em suas emissões locais só mencionou uma batalha de seis horas na Bolívia, ao norte de Higueras e insistiu no fato de que o Exército boliviano reconheceu ter tido nove baixas.

DEBRAY NO DIÁRIO DE “CHE”
Valle Grande, 10 – (U.P.I.) – Um dos trechos do diário de “Che” Guevara, lido esta tarde aos jornalistas faz referência ao intelectual francês Regis Debray, que está sendo processado em Camiri, acusado de participação em atividades de guerrilheiras.

“Debray demonstra grande capacidade intelectual, mas é deficiente para a luta”, diz o parágrafo em referência.

Fonte Jornal A Tribuna - 11 de outubro, 1967.

Postado por Paulo Renato Alves
18 de outubro, 2009

terça-feira, 17 de março de 2009

África: Independência do Marrocos

http://www.rabat-maroc.net

PROCLAMADA ONTEM A INDEPENDÊNCIA DE MARROCOS
Foram assinados uma declaração conjunta franco-marroquina e um protocolo anexo que dá a autonomia àquele país em relação de interdependência com a França – O poder legislativo será exercido soberanamente pelo Sultão Mohamed V – O novo Estado terá uma diplomacia e um exército.
Paris, 2 – (A.F.P.) – Foi assinada hoje, às 15,50 horas (GMT), no Quai D’Orsay, pelos senhores Christian Pineau, ministro do Exterior da França e Si Bekkai, primeiro ministro marroquino, a declaração conjunta franco-marroquina proclamando a independência do Marrocos e estabelecendo os laços de interdependência entre os dois países.

DEZ HORAS DE TRABALHO ININTERRUPTO
Paris, 2 – (A.F.P.) – Depois de 10 horas de trabalho ininterrupto, as delegações francesas e marroquinas chegaram a um acordo sobre uma declaração conjunta relativa à independência do Marrocos num sistema de interdependência com a França e sobre um Protocolo anexo definindo a situação do governo marroquino durante o período transitório das negociações. Esses dois documentos foram assinados solenemente hoje no Ministério do Exterior da França.

Essa declaração conjunta fora pedida pela delegação marroquina desde o início das negociações, a 22 de fevereiro último, Si Bekkai, chefe do governo marroquino e presidente da delegação, havia salientado que a independência do Marrocos devia ser solenemente declarada antes das negociações, de maneira que o Marrocos pudesse negociar como Estado soberano e em pé de igualdade com a França – os laços de interdependência a serem estabelecidos entre os dois países.

A delegação marroquina afirmara que a declaração da “Celle St. Cloud” nãe era bastante precisa e que, para que o Marrocos pudesse negociar, necessitaria ter capacidade jurídica para fazê-lo.

Foram necessárias oito sessões de trabalho para que as duas delegações chegassem a um acordo completo. Com efeito, era preciso encontrar uma fórmula que levasse plenamente em conta a posição da França: o governo francês não podia proclamar a ab-rogação do Tratado de Protetorado de 1912. Tal ab-rogação é da competência do Parlamento. Ora, o Parlamento não poderia se pronunciar sobre a ab-rogação do Tratado de Protetorado, senão no dia em que as negociações franco-marroquinas tivessem chegado aos laços de independência.

Finalmente, a redação do Protocolo anexo relativo à situação do governo marroquino durante o governo transitório que se prolongará até a conclusão das negociações, provocou discussões que retardaram a conclusão do acordo.

Esta assinala, pois o fim da primeira fase das negociações franco-marroquinas. A partir da semana próxima, as duas delegações iniciaram a discussão dos laços permanentes de uma interdependência livremente consentida e definida entre a França e o Marrocos.

Os círculos autorizados congratularam-se hoje com a conclusão desse primeiro acordo que permitiu augurar um feliz prosseguimento nas negociações.

O TEXTO DA DECLARAÇÃO CONJUNTA
Paris, 2 – (A.F.P.) – É o seguinte o texto da declaração conjunta franco-marroquina:
“O governo da República Francesa e Sua Majestade, Mohamed V, Sultão do Marrocos, afirmam sua vontade de dar pleno efeito a declaração da “Celle St. Cloud”, de 6 de novembro de 1955.

Verificam que, em virtude da evolução por que passou o Marrocos em seu progresso, o Tratado de Fez, de 30 de março de 1812, já não corresponde às necessidades da vida moderna e já não pode reger as relações franco-marroquinas.

Em conseqüência: o governo da República Francesa confirma solenemente o reconhecimento da independência do Marrocos, o que implica, em particular, numa diplomacia e num exército, assim como na vontade de fazer e de fazer respeitar a integridade do território marroquino, assegurada pelo tratados internacionais.

O governo da República Francesa e Sua Majestade, Mohamed V, Sultão do Marrocos, declararam que as negociações que acabam de ser abertas, em Paris, entre o Marrocos e a França, Estados soberanos e iguais tem por objetivo a conclusão de novos acordos que definirão a interdependência dos dois países, nos terrenos em que possuam interesses comuns, que organizarão assim sua cooperação sobre uma base de liberdade e igualdade, sobretudo em matéria de defesa, de relações exteriores, de economia, e de cultura, e que garantirão os direitos e as liberdades dos franceses estabelecidos no Marrocos e dos marroquinos estabelecidos na França, dentro do respeito à soberania dos dois Estados.

O governo da República Francesa e Sua Majestade, Mohamed V, Sultão do Marrocos convêm em que – conclui a declaração conjunta – enquanto se aguarda a entrada em vigor desses acordos, as novas relações entre França e o Marrocos serão baseadas nos dispositivos do Protocolo anexo à presente declaração.

Publicado no jornal A Tribuna em 3 de março, 1956

Postado por Paulo Renato Alves

18 de março, 2009

La Muerte de "Che" Guevara - Primeira Parte

Foto http://library.thinkquest.org

General boliviano confirma a morte de Guevara

La Paz, 9 – (U.P.) – O comandante da Oitava Divisão, general Juaquim Zenteno, anunciou oficialmente a morte do revolucionário cubano-argentino Ernesto “Che” Guevara.

Zenteno declarou, em Valle Grande, que Guevara tombou no choque ocorrido ontem nas imediações de Higueras. Acrescentou que o corpo foi embalsamado e será conduzido para La Paz.

RUMO A HIGUERAS
O comandante-chefe das Forças Armadas bolivianas, general Alfredo Ovando Candia e o comandante do Exército, general David La Fuente, viajaram esta manhã para a região de Higueras, nos contrafortes orientais dos Andes, onde ocorreu ontem o sério combate de quatro horas, que deixou um saldo de nove mortos e seis feridos.

Embora as fontes oficiais as mantivessem reservadas quanto aos detalhes, tudo indica que Ovando e La Fuente obtiveram informações que lhes permitiram, pelo menos, robustecer a suspeita que “Che” Guevara tinha sido um dos tombados na ação.

O presidente da República, general Renê Barrientos, permaneceu todo o dia em sua residência oficial em continuo contato com a região guerrilheira. Cerca do meio-dia se informou que o avião presidencial estava pronto para uma viagem do primeiro mandatário ao local se este o quisesse.

ESPERADA CONFIRMAÇÃO
Às 16 horas o alto comando das Forças Armadas disse que perturbações atmosféricas dificultavam as comunicações com a região de Valle Grande e que ainda não tinha notícia oficial, a qual era esperada a qualquer momento. A suposição de que o quase legendário “Che” Guevara, médico argentino feito dirigente da revolução cubana e posteriormente transformado em teórico de guerrilhas foi uma das vítimas da batalha travada ontem, esta manhã parece baseada em indícios muito frágeis.

Nenhuma autoridade quis explicar porque razão o comunicado oficial das Forças Armadas dizia que entre as baixas “presumivelmente” estaria Guevara.

GUEVARA ERA "RAMON"
Segundo o despacho de correspondentes da imprensa em Valle Grande, teria declarado que já se havia conseguido estabelecer que um dos cadáveres corresponde a “Ramon”, o nome de guerra sob o qual se supõe atuava “Che”.

Outras informações diziam que “Ramon” era um dos feridos e que estava sendo removido a Valle Grande, enquanto se faziam esforços para comprovar se tratava efetivamente de Guevara.

O coronel Zenteno Anaya, aparentemente, parte da base de que já estava perfeitamente comprovada a identidade entre “Ramon” e Guevara, assim como da certeza de sua morte.

O governo anunciou que amanhã viajará a Valle Grande uma comissão de peritos e técnicos, entre os quais especialistas em datiloscopia, com o objetivo de identificar cabalmente os mortos.

Fonte: Jornal A Tribuna - 10 de outubro, 1967

Postado por Paulo Renato Alves

17 de março, 2009

Espanha - Fim da Guerra Espanhola - Franco no poder

EPÍLOGO DO DRAMA ESPANHOL
Após a mais heróica resistência a antiga capital espanhola foi entregue às tropas nacionalistas pelo Conselho de Defesa – Os membros deste deixaram Madrid pouco antes da entrada dos comandados do general Franco – As vanguardas franquistas tendo à frente soldados italianos, marcharam pelas ruas da cidade sob aclamações da população

Desde novembro de 1936, as tropas nacionalistas bateram em vagas contra as barricadas, as trincheiras, as fortificações que defendiam Madrid. Bateram inutilmente. A capital resistiu bravamente enquanto houve um governo republicano na Espanha. O golpe do coronel Casado contra os restos desse governo republicano haveria fatalmente que redundar na entrega de Madrid. Entrega, aliás, esperada, desde que caíra Barcelona, desde que a Catalunha estava toda nas mãos do general Franco. A queda de Madrid, a rendição da capital, não é, pois, uma vitória militar contra as milícias populares. Ela é, antes, a conseqüência de outras derrotas, do rompimento da frente catalã diante da ofensiva franquista iniciada no Natal. Isto não diminui, absolutamente, o fato de que seja hoje o general Franco, hoje, o governo incontrastável da Espanha. Com a queda de Madri, a fuga dos membros da Junta de Defesa, desaparecem as veleidades da resistência, as contemporizações durante as quais a própria Junta procurou reduzir os seus baluartes à insignificância absoluta. Este fim tão cheio de dramáticas contradições, de trágicas hesitações e desistências, coroa dois anos e cinco meses de luta em defesa da capital. Não houve a “paz honrosa” com que o coronel Casado acenou aos republicanos. As bandeiras que entraram ontem em Madrid foram desfraldadas ao vento da rendição incondicional, depois que a força política do governo foi solapada por um movimento militar interno que desagregou toda a possibilidade de uma resistência mais demorada. Como poderia, nessas condições de impossibilidade de qualquer resistência ser obtida uma “paz honrosa”?

Madrid caiu diante dos imponderáveis de uma situação geral. Não foi vencida.

TÉRMINO DE UM CERCO DE 872 DIAS
Pela primeira vez, em quase três anos, as ruas de Madrid apareceram ontem, à noite, brilhantemente iluminadas

Madrid, 28 (U.F-F.) – A “pequena guerra mundial”, que se prolongou por quase três anos e que ameaçou propagar-se por toda a Europa, terminou, hoje, ao que parece, com a entrada das forças nacionalistas em Madrid, cunhada por cerca de um milhão de sobreviventes do mais terrível assédio dos tempos modernos.

Para completar a conquista territorial somente falta ao general Franco “limpar” a zona em forma de cunha, que se estende para o leste e para o sul, rumo ao Mediterrâneo.

Valência, Jean, Almeria e outras cidades republicanas não se renderam formal e incondicionalmente, mas a resistência, tal como em Madrid, sofreu um colapso e a guerra está próxima do fim que o povo tão ansiosamente desejava.

Os soldados republicanos retiraram-se aos milhares e os respectivos chefes fugiram, indo procurar asilo em portos estrangeiros. O general Miala festejado como o salvador de Madrid, quando os mouros do general Franco fizeram alto às portas da grande capital, em novembro de 1936, que proclamou que aquela cidade seria o túmulo do fascismo, fugiu de Madrid para Valência, de onde ao que se diz, embarcaria em um navio de guerra inglês.

Os primeiros dos 200 mil soldados dos nacionalistas que penetraram na capital, cujas ruas se acham grandemente arruinadas por granadas, o fizeram levando à frente legionários italianos.

A ocupação começou às 11 horas.

Os conquistadores encontraram a cidade coberta de bandeiras brancas, enquanto nas ruas ressoavam os gritos “Viva Franco” e “Arriba Espanha”.

Grupos de habitantes que faziam a saudação fascista aproximaram-se dos nacionalistas pedindo comida.

Na verdade, Madrid já estava cansada da guerra; milhares de pessoas ansiavam por ver-se livre dos bombardeios aéreos e dos canhoneios e pela oportunidade de ganhar o pão de cada dia. Por isso, a rendição incondicional verificou-se sem que tivesse sido disparado um só tiro. Desse modo, terminou-se um cerco rigoroso de 872 dias, estabelecidos pelos nacionalistas em torno da capital republicana.

Dias e noites foram dominados pelo terror, enquanto os aviões de bombardeio e os canhões de exercício sitiante passavam seus mortíferos projéteis sobre mais de um terço daquela cidade.
Os boulevards tão belos foram muitas vezes molhadas pelo sangue de homens, mulheres e crianças.

A fome deixou seu rastro trágico, não admirando, por isso, que grandes grupos de famintos descessem as ruas desejando o fim da guerra e do terror, destruindo barricadas construídas por arame farpado.

Os aviões de guerra do general Franco sobrevoaram a cidade em vôo baixo, fazendo acrobacias.
Por toda a parte se viram abraçados soldados que ficaram fiéis ao governo republicano, a outros que integraram as fileiras franquistas.

A União Rádio transmitia, constantemente, os boletins nacionalistas, anunciando aos madrilenhos que a sua cidade foi libertada.

O locutor da estação disse repetidas vezes:
“A Espanha entrou hoje em Madrid, onde foi recebida de braços abertos. Lembrai-vos da frase segundo a qual Madrid seria convertida no túmulo do fascismo. Pois bem, aqui estamos em Madrid que se converteu no túmulo do comunismo”.

Pela primeira vez, em quase três anos, as ruas de Madrid apareceram esta noite brilhantemente iluminadas e não há mais a recear os vôos de aviões de bombardeio que vinha atacá-la.

Os generais franquistas ora em Madrid, preparam-se para a entrada triunfal do generalíssimo à frente do grosso do seu exército, declararam pelo rádio que será concedido perdão absoluto a todas as pessoas que não tenham cometido crime.

Essa declaração fez com que aumentasse à afluência as ruas da rica cidade.

Todos os chefes políticos, na sua maior parte, que não puderam fugir a tempo, acham-se ocultos na cidade. – Edward de Pury, correspondente


Postado por Paulo Renato Alves
17/03/2009