sábado, 31 de janeiro de 2009

Otto Maria Carpeaux - Neo-realismo italiano e literatura norte-americana

AMÉRICA – ITÁLIA

Otto Maria Carpeaux

O neo-realismo italiano chegou-nos principalmente através do cinema, o que foi motivo de apreciações unilaterais. Chega-se, por exemplo, a afirmar que o neo-realismo seja pseudônimo do realismo socialista, imposto aos cineastas italianos por inspiradores russos. E cita-se, a respeito, o inconformismo social de certas daquelas fitas, como se o inconformismo fosse, por sua vez, sinônimo de comunismo. Mas, antes de tudo, não se fala na participação de numerosos não comunistas (De Sica e outros) e até de um ex-fascista (Blasetti) na onda. Tampouco se dá a importância ao fato de neo-realismo não constituir um bloco homogêneo: são notáveis as diferenças entre Moravia e Pavese, Brancati e Bernari, Berto e Vittorini, Pratolini e Arfelli, etc. Mas o pai comum de todos eles é Verga.

Verga foi o maior romancista italiano da segunda metade do século XIX. “I Malavoglia” é uma obra capital da literatura européia. Mas quando o romancista siciliano morreu, em 1922, estava meio esquecido. A época não foi propícia ao reconhecimento de sua arte. Durante o vintênio fascista dominava, como já antes, a “prosa d’arte”, o fragmento impressionista em estilo rebuscado, senão precioso. O romance passava por gênero inferior, por que anti-lírico. Mas se a Itália possui hoje uma grande literatura de ficção e se Verga é hoje considerado um mestre, deve-se a mudança - sim, a quem? A resposta é surpreendente: aos americanos.

Há nos Estados Unidos de hoje uma “italian vogue”. Verga ainda não é bastante conhecido. Mas além da importância que se dá, com justiça, a um romancista italiano de maneira antes tradicional, a Bachelli, nota-se a multidão de traduções de Moravia, Pratolini, Pavese, Vittorini, Berto. Algumas obras dela já saíram em “pocket books”, o que é sinal de sucesso popular. Mas as revistas culturais de elite também estão cheias de discussões sobre os italianos. Essa onda começou com a segunda guerra mundial quando os intelectuais americanos descobriram a Itália (assim como a primeira guerra os fez descobrir a França). O primeiro já fôra, antes Hemingway. Depois vieram os romancistas John Hersey (“A Bell for Adano”), Alfred Hays (“All thy Conquests”, “The girl on the Via Flaminia”), John Horne Burns (“The Gallery”), Harry Brown (“A Walk in the sun”). Todos esses romances são altamente inconformistas. Descrevem como realismo insubornável o choque das duas civilizações, na ocasião da entrada dos exércitos anglo-saxões na Itália. Como diz John W. Aldridge: “Verificaram, na Itália, a falha do americanismo”. Ignoravam que os italianos com quem se encontraram já tinham feito a verificação contrária. Pois à onda italiana nos Estados Unidos precedeu uma onda americana na Itália.

O primeiro contato deu-se por volta de 1930, quando o crítico Emílio Cechi voltou de uma viagem para os Estados Unidos com um livro “América Amarga”. Cechi, crítico finíssimo, escritor toscano de mentalidade mediterrânea, esteticista, representante dos melhores da “prosa del’arte”, ficou horrorizado nos Estados Unidos. A civilização americana afigurava-se-lhe Museu de Horrores. Uma democracia de escravos fugitivos, feia e brutal, de mau gosto. A sutileza das expressões não chegou a encobrir essa tendência do seu livro, muito parecida com o anti-americanismo dos intelectuais franceses de esquerda, de hoje. Aconteceu, porém, que o público italiano de 1930, não deu confiança a Cechi. Pois no horror do esteta de tradição clássica apenas acreditavam descobrir a aversão de um fascista contra a democracia e de um acadêmico contra o realismo. Mas os jovens intelectuais já pensavam de outra maneira.

Um escritor que seria, mais tarde, um dos maiores neo-realistas, Cesare Pavesi, iniciou sua carreira literária com traduções de obras americanas e ensaios críticos sobre elas: Melville, Whitman, Masters, Sinclair Lewis, Sherwood Anderson, Sandburg, Dos Passos, Faulkner. Lá onde Cechi, só percebera brutalidade e mau gosto, descobriu Pavese a frescura de um novo realismo, a sinceridade insubornável de forças moças, que lhe pareciam muito mais sadias que o esteticismo dos italianos, a poesia hermética, a neurótica “prosa d’arte”. Certa vez, falou da literatura americana como de “um grande côro, enquanto nós italianos ficamos presos em monólogos”. E assim também pensavam e se manifestavam um Vittorini e um Berto.

Em parêntese: é notável que há 25 anos atrás anti-americanismo passava por sinônimo de fascismo, e americanismo por sinônimo de inconformismo. Hoje acontece ao contrário. Direita e esquerda trocaram de posições. E ainda nos querem impor esta ou aquela atitude, como a única certa.

Um julgamento sincero sobre essa vira-volta encontra-se numa entrevista de Giuseppe Berto na revista “Galleria” (parcialmente transcrita na revista “Fiera Letteraria”, de 22 de maio de 1955). Diz o autor de “Il cielo é rosso” que “os americanos nos libertaram da estéril “prosa d’arte”; não nos ensinaram como escrever; e por isso um autor de segunda categoria como Steinbeck, que não é um grande romancista, podia exercer uma influência decisiva”.

Novamente em parêntese: a influência que um escritor exerce no estrangeiro, não se baseia fatalmente no seu valor intrínseco. Também contribuem para tanto outros fatores, às vezes dificilmente explicáveis. Nunca encontrei um livro de literatura americana em que se tenha dado a menor importância ao romancista Michael Gold; muitos nem lhe registram o nome. É, no entanto, um fato que seu romance “Judeus sem dinheiro”, traduzido para o português, exerceu no Brasil profunda influência, sobretudo no romance nordestino. Um dos fatores, no caso, era de natureza exterior: a revolução de 1930, que destruiu ou condenou ao ostracismo velhos hábitos mentais, impondo nova mentalidade social e literária. Na Itália, o fato correspondente foi a queda do fascismo, a derrota militar de 1949. Toda uma época e todas as suas manifestações viraram inúteis. Na Itália das “cidades abertas” e bombardeadas e dos “ladrões de bicicletas” não havia uso para a “prosa d’arte”. Foi preciso encarar a dura realidade.

A onda americana, na literatura italiana entre 1939 e 1940, fora uma forma de oposição contra o regime fascista e contra uma literatura alheia à vida. Através da literatura americana, os intelectuais italianos descobriram a realidade italiana. Nasceu o neo-realismo.

Mas não há realismo (ou naturalismo) que forneça apenas imagem da realidade. Também implica um julgamento dela. E este seria insincero, se fosse positivo. O neo-realismo é um protesto. É, por definição, inconformista. O primeiro romance de Moravia, ainda no tempo do fascismo, chamava-se “Os Indiferentes”. Depois vieram: “As ambições frustradas”, “A desobediência”, “O desprezo” e, enfim, “O conformista”.

A literatura norte-americana de hoje é conformista. Um Frederick Bueckner, um Truman Capote, uma Garson Mc Cullers cultivam “prosa d’arte”. Os americanos lêem a literatura italiana de hoje como se fosse o documento do recente passado literário americano. A literatura norte-americana já exerceu, há 20, há 30 anos, o mesmo papel muito sério da literatura russa do século XIX: uma grande literatura, inspirada por motivos morais. Hoje, os italianos lembram os americanos seu dever para com o mundo. Esperamos algo de útil, dessa colaboração Itália-América.

Domingo, 16 de setembro de 1956.
Jornal A Tribuna

Postado em 31 de janeiro de 2009.

Paulo Renato Alves

Um comentário:

  1. Olá, estou fazendo uma pesquisa no meu curso, Letras, a respeito de primeiros textos literários de alguns países e gostaria de saber se você saberia me informar qual o primeiro texto literário surgido na Itália, assim como no Português temos a Carta de Pero Vaz.

    Agradeço.
    Marina.

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