Da Colina de Anchieta
O Samba e o Trabalho
R. Tristão
São Paulo, 20 – Não há muito tempo, houve que acusasse no sambas cariocas a tendência para depreciar a mulher. A nossa doce companheira – deixem o passar o “doce” com um inefável eufemismo – é aí tratada com ironia e, não raro, com escárneo. Por que? Si investigarmos, veremos que as camadas mais rudes da população apresentam muitos traços de primitivismo social, e nas hordas primitivas a mulher sempre foi tratada como escrava. Que determinados núcleos humanos, conforme seu grau de instrução e educação, reproduzem os mais vários estádios históricos do mundo. Em certas aldeias bascas ainda subsiste a tradição do “covade”, isto é, o hábito do homem fingir que experimenta as dores e certos distúrbios da gravidez da esposa.
O fato é que os sambas, como de resto a música de outras proveniências – veja-se o fado e as canções dos “apaches” – tratam a mulher depreciativamente. Há exceções, é certo, mas para confirmar a regra. O homem, aí, em plena desordem dos instintos, vê no amor, que sempre nele se manifesta sob a forma brutal de paixão, uma tirania a que procura fugir; logo, a mulher que dá causa ao sofrimento passional só pode ser encarada como inimiga. Além do que, em meio das maiores privações em que vivem os homens nessas camadas, a mulher constitui o tormento de cada minuto, chamando o companheiro à realidade, com ele discutindo, com ele discutindo de manhã à note para que não se embriague, para que abandone o botequim e vá procurar trabalho.
E chegamos, com a palavra “trabalho”, ao ponto desejado. O Sr. Negrão de Lima, que já havia denunciado o pouco rendimento da produção, achando que a culpa cabe ao nosso operário deseducado, e portanto, desambicioso, entrou de implicar com o samba, porque com freqüência canta a boa pândega e a malandragem. Há com efeito, um samba que diz “Meu pai trabalhou tanto que eu já nasci cansado”*.
Mas, da mesma sorte que o ministro do Trabalho tomou o efeito pela causa, quando faz referências à queda de produção, achando que a culpa cai sobre os empregados, ao perceberem maiores salários, também nos casos dos sambas é com profunda mágua que não podemos concordar com s. excia.
A música é uma emanação do meio em que brota. Traz, portanto, a sua marca de origem. Não se pode exigir que os bardos do morro do Salgueiro, no Rio, componham letras tão delicadas e estimulantes dos sentimentos generosos, como os poetas que habitam Copacabana. Da mesma forma, uma valsa vienense expressa uma delicadeza de sentimentos que seria absurdo procurar no próprio tango argentino, a meu vêr muito mais degradante do que os nossos sambas. Na letra do tango argentino, como no fado outrora tão guerreado pela boa sociedade de Lisboa, há sempre uma prostituta ou um malandro a desabafar contra a ingrata que o abandonou.
O ministro do Trabalho acha que, modificando as letras dos sambas, está liquidada a calaçaria dos morros e os operários tomarão os caminhos da fábrica, em vez de dirigir-se ao botequim. Não pode haver maior engano. Si a música é a pura emanação do meio, só com a mudança das condições ambientes mudar-se-á a música que as exprime. O trabalho mal remunerado, o custo elevadíssimo das utilidades, em descorrelação com os salários, o abandono em que se vêem os habitantes dos morros, sem escolas para os filhos, sem postos de saúde onde receber conselhos de higiene e remédios para suas enfermidades, sem assistência de nenhuma espécie – tudo Esso gera o desespêro dessas populações, hoje classificadas de “marginais”, desespero que se exala na música. E esta música não pode conter os refinamentos que se encontram em peças de Mozart, compostas para os aristocratas da sua época.
Como detentor da pasta que deve estar em contato com os meios trabalhistas, auscultando-lhes as necessidades, perquirindo-lhes as angústias e deficiências, o Sr. Negrão de Lima nos parece um neófito em matéria de psicologia social. Pelo menos, tanto a sua famosa exposição sobre a queda de índices de trabalho, como o seu palpite sobre os sambas, ao ponto de instituir um concurso para melhorá-los, premiando as letras que cantem o trabalho, denunciam um primarismo lamentável. E é pena.
O Samba e o Trabalho
R. Tristão
São Paulo, 20 – Não há muito tempo, houve que acusasse no sambas cariocas a tendência para depreciar a mulher. A nossa doce companheira – deixem o passar o “doce” com um inefável eufemismo – é aí tratada com ironia e, não raro, com escárneo. Por que? Si investigarmos, veremos que as camadas mais rudes da população apresentam muitos traços de primitivismo social, e nas hordas primitivas a mulher sempre foi tratada como escrava. Que determinados núcleos humanos, conforme seu grau de instrução e educação, reproduzem os mais vários estádios históricos do mundo. Em certas aldeias bascas ainda subsiste a tradição do “covade”, isto é, o hábito do homem fingir que experimenta as dores e certos distúrbios da gravidez da esposa.
O fato é que os sambas, como de resto a música de outras proveniências – veja-se o fado e as canções dos “apaches” – tratam a mulher depreciativamente. Há exceções, é certo, mas para confirmar a regra. O homem, aí, em plena desordem dos instintos, vê no amor, que sempre nele se manifesta sob a forma brutal de paixão, uma tirania a que procura fugir; logo, a mulher que dá causa ao sofrimento passional só pode ser encarada como inimiga. Além do que, em meio das maiores privações em que vivem os homens nessas camadas, a mulher constitui o tormento de cada minuto, chamando o companheiro à realidade, com ele discutindo, com ele discutindo de manhã à note para que não se embriague, para que abandone o botequim e vá procurar trabalho.
E chegamos, com a palavra “trabalho”, ao ponto desejado. O Sr. Negrão de Lima, que já havia denunciado o pouco rendimento da produção, achando que a culpa cabe ao nosso operário deseducado, e portanto, desambicioso, entrou de implicar com o samba, porque com freqüência canta a boa pândega e a malandragem. Há com efeito, um samba que diz “Meu pai trabalhou tanto que eu já nasci cansado”*.
Mas, da mesma sorte que o ministro do Trabalho tomou o efeito pela causa, quando faz referências à queda de produção, achando que a culpa cai sobre os empregados, ao perceberem maiores salários, também nos casos dos sambas é com profunda mágua que não podemos concordar com s. excia.
A música é uma emanação do meio em que brota. Traz, portanto, a sua marca de origem. Não se pode exigir que os bardos do morro do Salgueiro, no Rio, componham letras tão delicadas e estimulantes dos sentimentos generosos, como os poetas que habitam Copacabana. Da mesma forma, uma valsa vienense expressa uma delicadeza de sentimentos que seria absurdo procurar no próprio tango argentino, a meu vêr muito mais degradante do que os nossos sambas. Na letra do tango argentino, como no fado outrora tão guerreado pela boa sociedade de Lisboa, há sempre uma prostituta ou um malandro a desabafar contra a ingrata que o abandonou.
O ministro do Trabalho acha que, modificando as letras dos sambas, está liquidada a calaçaria dos morros e os operários tomarão os caminhos da fábrica, em vez de dirigir-se ao botequim. Não pode haver maior engano. Si a música é a pura emanação do meio, só com a mudança das condições ambientes mudar-se-á a música que as exprime. O trabalho mal remunerado, o custo elevadíssimo das utilidades, em descorrelação com os salários, o abandono em que se vêem os habitantes dos morros, sem escolas para os filhos, sem postos de saúde onde receber conselhos de higiene e remédios para suas enfermidades, sem assistência de nenhuma espécie – tudo Esso gera o desespêro dessas populações, hoje classificadas de “marginais”, desespero que se exala na música. E esta música não pode conter os refinamentos que se encontram em peças de Mozart, compostas para os aristocratas da sua época.
Como detentor da pasta que deve estar em contato com os meios trabalhistas, auscultando-lhes as necessidades, perquirindo-lhes as angústias e deficiências, o Sr. Negrão de Lima nos parece um neófito em matéria de psicologia social. Pelo menos, tanto a sua famosa exposição sobre a queda de índices de trabalho, como o seu palpite sobre os sambas, ao ponto de instituir um concurso para melhorá-los, premiando as letras que cantem o trabalho, denunciam um primarismo lamentável. E é pena.
Publicado em 21 de maio, de 1946
Jornal A Tribuna
Mantida a grafia original do texto.
Nota do blog: Música Citada – Nasci Cansado (Wilson Batista e Henrique Alves)
Postado em 31/01/2009
Paulo Renato Alves
Nota do blog: Música Citada – Nasci Cansado (Wilson Batista e Henrique Alves)
Postado em 31/01/2009
Paulo Renato Alves
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